A questão da autorização para biografias, nome de guerra para a discussão da constitucionalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil (Lei 10.406/2002) do Código Civil, é mais do que jurídica. Ela é também, fundamentalmente, cultural e econômica. Se não pensarmos nessas duas dimensões, a discussão acaba caminhando para o lado errado, especialmente quando nomes respeitados pela contribuição à cultura brasileira se posicionam com argumentos frágeis e sem se atentar para os efeitos perversos do que defendem.
As editoras do país faturam pouco menos de 5 bilhões por ano. Parece muito, mas é porque n o nos damos conta de um fator fundamental no mercado editorial. A diversidade.
O Brasil conhece, anualmente, quase 30 mil novos títulos e um número aproximado de reedições (dados de 2012 da pesquisa SNEL/CBL). É uma vastidão de informação, resultado de investimentos cotidianos de centenas de editoras ativas no país. Mas qual é o retorno econômico disso?
Em defesa d a autorização prévia para biografias, um dos músicos da associação Procu re Saber afirmou que não é justo que autores e editores ganhem milhões de reais com a vida dos artistas. Há vários problemas nesse discurso, mas vamos tomar a primeira questão: quanto pode faturar um livro do gênero?
Pensemos num livro que venda cem mil exemplares – hoje algo raríssimo no mercado editorial brasileiro e viável apenas para poucas editoras.
Se o preço definido pela editora for de 40 reais, os consumidores gastarão com ele 4 milhões de reais. Metade disso, aproximadamente, ficará com as livrarias. Sobraram 2 milhões. Entre dez e quinze porcento irão para o autor, que ficará longe da casa do milhão: receberá entre 400 mil e 600 mil reais em direitos autorais. Como o trabalho da biografia envolve pesquisa, entrevistas, redação, risco enorme de insucesso comercial, quantos meses isso paga? Para a editora, os cerca de 1,5 milhão que restaram serão gastos com salários de revisores, preparadores, diagramadores e editores, papel, gráfica, manutenção dos negócios, marketing, juros de dívidas etc. Seguramente, sobrarão muito menos do que 1 milhão de reais de lucro. Muito menos mesmo.
Se a editora ficar com uma receita líquida que seja o dobro do que receberá o autor, terá muito o que comemorar. Ninguém ficou milionário.
Esse é o ponto de partida. Mas a lei, obviamente, não é para “biografias que vendem 100 mil cópias”. É para toda e qualquer biografia. Vamos dividir os 2 milhões por mil, para pensarmos em livros que, com boa vontade, chegarão a 1.000 exemplares vendidos. Sim, a editora faturou, com esse sucesso editorial (mil exemplares não é pouco, lembrem-se que são 60 mil títulos por ano), 20 mil reais. O autor recebeu 4.000 reais. Alguém está trabalhando não exatamente pelo retorno em dinheiro – normalmente, por interesse intelectual, investimento pessoal, aprendizado, necessidade de difundir um conhecimento.
Ocorre que, muitas vezes, para a memória e a cultura do país, a biografia de 1.000 exemplares vendidos é tão ou mais importante que a de cem mil cópias. E, além de todo o constrangimento econômico próprio do mercado editorial, esse dois artigos do Código Civil impõem um constrangimento jurídico. Que editor aceitará correr o risco de publicar biografias estando, permanentemente, ameaçado pela apreensão, suspensão de vendas, retiradas do mercado, ações e ações na Justiça?
A disparidade de forças econômicas entre a biografia e o biografado, no caso de Roberto Carlos, é que levou a Planeta a aceitar um acordo à revelia de seu autor. Imaginem isso em escala reduzida?
Todas as editoras já são, frequentemente, sujeitas a inseguranças jurídicas em demasia, quando decidem por publicar um livro. Com as biografias, essa questão vai ainda mais longe, porque a possível interdição de uma obra significa, para empresas como as nossas, um risco não apenas legal, mas também econômico.
É preciso considerar que as editoras independentes são, em geral, negócios pequenos e médios, que precisam calcular muito bem os investimentos, e os custos legais de processos não têm como ser incluídos em todos os livros. Esse risco econômico acaba tendo impacto direto no universo de obras que são e serão publicadas no país , com resultado nefasto para a memória e a história nacional.
É preciso considerar, também, quais seriam os impactos da restrição às biografias em outras obras, como ensaios, livros acadêmicos e obras literárias, lembrando que um dos trabalhos que ensejou a retomada desse debate, Jovem Guarda: Moda, Música e Juventude, de Maíra Zimmermann, é de uma editora filiada à Liga Brasileira de Editoras (Libre, que reúne editoras independentes brasileiras), a Estação Letras e Cores, e decorre de uma dissertação de mestrado . Não obstante seu evidente interesse cultural e o fato de não ser uma biografia stricto sensu, a editora recebeu um pedido de retirada da obra do mercado por parte dos advogados do cantor Roberto Carlos.
Entendemos que parte dos artistas se sinta excessivamente exposta no mundo de hoje. Não é, no entanto, o mercado editorial o responsável pela situação. É a imprensa de celebridades, capaz de publicar uma foto de um cantor na rua com a legenda: “Fulano estaciona o carro”. E, claro, ir muito além, em situações que resultam em retorno econômico maior.
Essa imprensa, no entanto, não sofre as mesmas restrições legais que os editores de livros têm enfrentado nos tribunais ou em acordos extrajudiciais baseados em decisões que nos parecem absolutamente deslocadas da realidade.
Consideram os correto que um artista cobre pelo uso de sua imagem num comercial de TV ou jornal e demande na justiça uma reparação quando não houver autorização. O mesmo valeria para a imagem na capa de um livro que trate de sua vida ou de questões a ele relacionadas? Cremos ser urgente diferenciar claramente esses dois tipos de uso “comercial”, entender que o maior valor de um livro não é seu papel como mercadoria na sociedade, mas como difusor de ideias e conhecimentos que podem nos enriquecer – cultural e economicamente, inclusive – a todos.
Finalmente, defendemos que o direito de imagem não pode se transformar numa extensão deformada dos direitos de autor – ou s eja, ele não pode ser entendido, como vêm fazendo tantos tribunais, de maneira excessivamente econômica. A vida de uma pessoa não é uma obra intelectual: ela acontece e está sujeita a ser registrada, especialmente quando for relevante socialmente. Cercear o direito de interpretar a vida é cercear a vida intelectual.
Não há mecanismo jurídico e econômico que possa ser usado para sustentar uma violência dessas.
Haroldo Ceravolo Sereza, jornalista e editor da Alameda, presidente da Libre (Liga Brasileira de Editoras) e Gláucia Gonçalves, da editora UniDuni, vice-presidente da entidade
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